Não é segredo para ninguém que os franceses adoram bater o pé para reclamar. Também gostam de discutir por qualquer motivo e não abrem mão de bufar. Sim, os franceses bufam. Bufam quando são contrariados, bufam quando acabam as baguetes da boulangerie, bufam porque ja estamos em novembro e a temperatura ainda esta agradavel. Eles bufam por tudo e, acima de tudo, eles bufam por nada. Quando cheguei aqui, eu achava engraçadinho (afinal, ver adultos se comportando como crianças mimadas tem a sua dose de graça), depois passei a achar irritante e hoje eu ja acho normal, talvez porque eu tenha aprendido a bufar também. Não tem jeito, é uma esquisitice coletiva que você adquire com o tempo.
Acontece que bufar é facil, basta soltar um "pfff" discreto e dar uma viradinha nos olhos para que todo mundo entenda que você não achou tal coisa legal. A bufada é a maneira mais facil de se fazer entender em terras gaulesas, ainda que você seja um estrangeiro. Dificil mesmo é aprender a bater-boca como um francês. Porque bater-boca não é isso ai que você esta pensando, não é sair gritando com o entregador porque a pizza chegou com uma hora de atraso, não é usar palavrões para xingar o motoqueiro que deu uma encostada no seu carro. Bater-boca, meu amigo, é a arte de colocar para fora toda a raiva que você esta sentindo, elevando levemente o tom da sua voz -sem gritar- e conseguir, assim, humilhar o seu adversario sem o uso de palavrões ou termos discriminatorios. E essa arte, anota ai, quem domina são os franceses.
Foram precisos dois anos convivendo com eles para aprender a distribuir pequenos coices eficazes. Digo coice porque patada é para os fracos, francês da é coice mesmo. Ja tomei coice de garçom, de professor, de vendedora e até de pipoqueiro! So que de uns tempos pra ca, eu comecei a revidar. A minha primeira vitima foi um vizinho folgado que sempre bate à nossa porta para reclamar. Toda vez é o Léo quem o atende, prometendo que vamos parar de fazer os barulhos que a gente ja não faz. Sabado passado quem abriu a porta fui eu:
- Bonsoir, madame, vocês estão fazendo barulho demais...
- Barulho? Que barulho, monsieur?
- Andando. Vocês pisam muito forte.
- Ah, pois é, mas é assim que a gente anda. (detalhe: estavamos deitados no sofa vendo um filme)
Entrei no jogo dele. Não bati a porta, não fui grosseira, mas também não fiquei calada como fiz todas as outras vezes que um francês me chamou à atenção. Discuti de igual para igual, como eu faria se estivesse no Brasil. E ainda nos desejamos boa noite ao final da discussão - o toque de finesse que deve existir em todas as engueulades (que na verdade é o que diferencia um bate-boca brasileiro de um francês).
Vendo que eu era capaz de me comportar como eles, decidi não levar mais desaforos para casa. Confrontei até o motorista de ônibus que não parou no meu ponto para eu descer. O que eu faria uns meses atras? Xingaria mentalmente o cara, desceria calada no ponto seguinte e caminharia até a minha casa me odiando por não ter tido coragem de perguntar por que diabos ele não parou. Pois hoje eu bufei, caminhei até a frente do ônibus e perguntei se ele não tinha visto o meu sinal. Dei de cara com uma Mirelle que eu achei que tivesse ficado no Brasil, uma Mirelle justa, questionadora e, agora, chiquérrima - porque também sabe bater-boca em francês.